sábado, setembro 27, 2008

O TEU PAI É VIDRACEIRO?

sábado, setembro 27, 2008

Tenho uma amiga que vive no campo e para contactar connosco manda-nos mails sempre muito engraçados. Desta vez, conta aqui a chegada da neve pelas suas bandas, ou pelos seus sítios, como queiram chamar. Para mim, ela escreve como ninguém e sempre com muito humor. Eu sei que este texto dela é já um pouco antigo, mas ao relê-lo ainda me ri como se fosse da primeira vez. Então cá vai:

Caixa de bombons
A minha geração, que aprendeu inglês por manuais do ensino público, foi instruída para saber dizer "is your father a glazier?". Faltava só perceber a importância de tal saber. Pois tardou, mas arrecadou e cá veio esta madrugada: o vidraceiro é daqui da zona e deixou os vidros espalhados pelo chão fora, numa extensão inaudita. Parti logo uma série deles, a passear os canídeos ao romper d'alva. Hoje, alva com propriedade! Tenho cenários de caixa de bombons suíços colados nas janelas. A evolução do gelo é o próximo "happening" local.
Entabulei mesmo conversa com o motorista do limpa-neves! Não sabia, mas até já o conhecia. Costuma trazer-me lenha e encaminhar-me os sobreiros. Ontem, ele e mais uns vizinhos apiedaram-se das centenas de atolados das neves, saíram -- por sua iniciativa -- com os tractores grandes e as retro-escavadoras (de cabine aberta!) para a estrada e foram os heróis do dia para montes de nós. A Protecção Civil tem mais com que se preocupar, em tempo de acalmia, do que apoiar e organizar as pequenas associações e esta generosidade aldeã -- mas claro está que, quando há catástrofes, são mesmo elas que nos valem...
A relatividade do tempo
Sim, deu-me a maluca e fui almoçar ao Reguengo, com uns amigos de Lisboa, que, desapercebidos do nevão, vieram visitar os campónios. Para lá, tudo lindo! A neve acabava por voltas da gruta do Escoural, numa fotografia que não tirei porque já estava atrasada para o almoço. A miudagem da minha freguesia ficou para trás, atirando bolas de neve, os pais fotografando a esmo, os velhotes desencostados das ombreiras e comentando: "ná, nã se vê uma côsa assim d'há cinquentanos, ê cá nunca na vi assim tãtamanha (e têm para cima dos setenta)". E os pobres da vilória baixa, gozava eu, só com umas pingotas de chuva e lama. O almoço correu muito bem, sob todos os aspectos, e muitos queriam dar-lhe continuação em Montemor. Mas eu e a minha amiga Xana tínhamos de ir, esperavam-nos uns trabalhos muuuuuuuuuito urgentes, não podíamos continuar em folias e, muito responsáveis, metemos as duas para casa. A neve já então caía há bem uma hora, mas ainda se apagava ao tocar o chão. Só que... A gente esquece-se que isto é uma serra e que sobe bem. "A gente", fui eu e mais umas dezenas de taralhocos. Tudo gente cheia de pressa para qualquer coisinha. Que a meio da subida foi obrigada a dar-se conta de que devia ter tracção às quatro rodas... ou parar. E parámos. Durante quase duas horas, esperámos que o efeito-telemóvel surtisse algum resultado. Antes que acabasse a gasolina ou a bateria, perdendo-se assim o luxo do ar condicionado. Mas correu tudo de feição. A primeira visão onírica do dia foram os bombeiros de Montemor. No meio de uma tempestade, rebocaram-me os 200 metros que faltavam até ao cume (é mesmo um desespero: a ver-se, ali assim, a olho nu, a solução para o problema e não se conseguir chegar lá!). Na descida, o Bóia andava com a sua "bondosa" a fazer de limpa-neves, até ao Escoural. Aí, já não arrisquei subir para a Boa Fé. Fui à GNR, para me avisarem quando podia passar na estrada. Duas horas depois, sempre sem informações do estado da via, telefonei eu própria ao já referido Bóia, a saber se ele estava a limpar a estrada que me interessava ou se sabia quem estivesse. Sossegou-me, dizendo que não tinha conhecimento de estar impedida; mas que, se eu precisasse, me ia lá safar. Isto sim, é qualidade de vida, isto sim, é vizinhança, isto sim, é dar solução aos problemas! Mas não foi preciso, porque os meus vizinhos da Boa Fé que tinham tractores grandes com baldes andavam numa fona, serra abaixo, serra acima, a limpar neve (50 cm dela, nalguns pontos!) e a rebocar os despistados. Eu e a Xana chegámos a casa noite escura, moídas e com um caos para gerir. Em casa do pai dela, havia uma lareira acesa e comidinha, que os foliões já tinham chegado há um tempão... A minha estava entregue ao gelo: a salamandra não aguentou esperar por mim, e arrefeceu... O trabalho muuuuito urgente não teve outro remédio senão esperar -- e sobreviveu, que ainda aqui está...
Traição japonesa
O caminho, habitualmente de terra batida, ficou quase intransitável. Os ramos das árvores não aguentaram o peso da neve e juncaram o trajecto; a mistura do gelo com o barro transformou o piso num patinódromo e, finalmente, optei por deixar a viatura no meio do caminho, antes de ir parar a uma valeta ou partir qualquer coisinha que me fizesse falta. E ia para buscá-lo hoje, às 7 da matina. O dia amanheceu... indizível -- já conto. Mas o que interessa é que tinha deixado a máquina fotográfica no porta-bagagens do carro. Os cães apreciaram o longo passeio matutino, com o Caló a revelar os seus dotes de camaleão, o pêlo branco disfarçado de tufo de neve. Mas quem é que conseguia abrir as portas do automóvel?! Nem centralina, nem fechaduras: nada funcionava, geladinhas.
Perda irreparável
O que me fez perder a oportunidade de fotografar a cor! Também ninguém acreditaria que as fotografias não tinham tido tratamento laboratorial ou que o rolo não estava estragado. É que tudo emanava ciano! Tudo?! Não: um triângulo de céu resistia à paz, à suspensão, à irrealidade, em fortes tons de fogo, qual pôr-do-sol africano. Único e só visto. O resto era uma sucessão daqueles clichés National Geographic: as primeiras estalactites; os pardalitos sobreviventes a saltaricarem nas imediações de uma ponta de verde; os trilhos cruzados de manobras do jipe da Paula e do Paulo, que apareceram in promptu na melhor altura; o verdadeiro edredon de neve -- versão séc. XXI do manto de neve, mais um que só visto --todo à volta da casa, onde o tijolo-burro acolhia a espessura branca de forma bem mais firme do que as juntas de cimento, ficando tudo às almofadinhas... Pronto, graças ao choque térmico, eis que, só quando se conseguir consultar a mente directamente, essas imagens saltarão à vista.
Incondicional
A Lola está comigo e não abre mão: a salamandra foi a mais brilhante iniciativa dos últimos anos! Passámos a noite como se não houvesse gelo, neve e fantasmas gigantes à nossa volta.

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